“Tenho saudades de ver os meus amigos. Ver os filhos dos meus amigos. Porque os meus
amigos veem a cara do meu filho, mas eu não vejo a cara dos filhos deles. Tenho saudades de
ver o mundo.”
Carlos Francisco dos Santos, 47 anos, conhecido por todos como Carlitos, natural de Angola,
mas a viver em São Brás desde o seu primeiro ano de idade, considera-se sambrasense de
gema, adora viver, trabalha há 19 anos no Auchan em Faro, gosta de ir ao ginásio, Benfiquista
ferrenho, adora momentos de convívio com os amigos e família e a sua paixão é viajar!
Recorda os tempos de infância na Escola do Alportel, a juventude irreverente, os tempos no
futebol, os amores e dissabores da vida, o acidente que o marcou para a vida, a resiliência e
capacidade de se readaptar à vida tal como ela é.
Um exemplo de um verdadeiro lutador que merece todo o nosso respeito e admiração. Assim
é o nosso entrevistado em destaque deste mês, obrigado Carlos pela confiança e pela bonita
conversa em que abriste o teu livro da vida.
O que recordas da tua infância já em São Brás?
Tudo o que me lembro da minha vida é aqui em São Brás, vim para cá com apenas 1 ano de idade,
por isso, esta é a minha realidade de sempre.
Vivi uns anos nos Juncais, depois o meu pai faleceu e eu continuei lá com a minha mãe. Quando a
minha mãe faleceu, mudei-me para o Tesoureiro, e só depois vim para São Brás, para o Bairro
Social.
Andei na Escola do Alportel, lembro-me das brincadeiras, acho que eu era o mais rebelde, mas
também era uma máquina a matemática!
O Marco Pedro foi meu colega, é um amigo para a vida!
Durante a juventude, vem a paixão pelo futebol…
Sim! Comecei na União Sambrasense, mas corri os clubes todos de São Brás. Depois de estar na
União Sambrasense, joguei na Penha, e quando regressei voltei para os Juvenis do Sambrasense.
Depois tive nos Machados quando tinha 15 anos. Quando era sénior, fui para Estoi.
Qual era a tua posição a jogar à bola?
Fui defesa central, e defesa direito. Depois chegou a uma altura que me dediquei à baliza! Ainda
ganhei duas taças em guarda-redes!
Aos 24 anos sofres um acidente que te marca para o resto da vida e te rouba a visão. O que
aconteceu nesse dia?
Eu só trabalhei em dois sítios, tive 3 anos nos Bombeiros e depois fui trabalhar para a Molalgarve e
foi aí que aconteceu. Ao dia 12 de novembro de 1998, lembro-me como se fosse hoje.
O Eugênio da Molalgarve naquele dia disse: “Temos muito trabalho! E vai um de cada vez tomar a
bucha”, e eu fui o primeiro. O meu amigo colega Ângelo pediu-me a máquina, pois a minha era mais
forte que a dele, e ele estava de volta de um autocarro. Lembro-me de lhe dizer: “Espera aí que vou-
te ajudar. Onde se mata 2, não se mata 1”, foi mesmo assim que lhe disse. Depois tirei as 4 placas, e
quando saí, o macaco escapou e apanhou-me a mim. Ao Ângelo só apanhou as pernas, e a mim foi
a cara. Naquela altura, o único a reparar foi o motorista.
Do momento do acidente até ao Hospital do que é que te recordas?
Lembro-me até ao hospital de Albufeira, recordo-me de estar de joelhos e ver a ambulância a entrar
de marcha atrás, e de me colocarem em posição de segurança, aí já começaram as complicações,
comecei a perder sangue pela boca.
Quando cheguei a Albufeira, o médico disse que eu deveria ter ido para Faro! Depois só me recordo
quando estava em Santa Maria.
Tiveste sempre consciente?
Até chegar a Faro, sim.
Qual foi a última coisa que te lembras de ver?
Comecei a deixar de ver quando a ambulância estava a fazer marcha-atrás. Depois daí já não vi mais
nada. A minha última imagem é mesmo da ambulância que me veio buscar.
Qual era o prognóstico do médico?
O médico em Faro disse que estava praticamente morto, que não havia nada a fazer. Depois, o
enfermeiro Aníbal, que na altura era o Chefe dos Enfermeiros em Faro e era subchefe dos
Bombeiros Voluntários, disse que se fosse imediatamente para Lisboa, que sobreviveria.
Foi ele que passou por cima dos médicos, pediu o Helicóptero, ainda levou um processo do Hospital
de Faro, mas nunca deu em nada, mas se não fosse ele, já não estaria aqui.
Na altura, em que perdeste a visão, o teu filho mais novo já tinha nascido?
Já! Mas só tinha 3 meses, lembro-me de o ver e de lhe dar um beijinho e despedir-me: “o pai vai
trabalhar”. Foi a última vez que o vi.
Como é viver ao longo destes 23 anos sem conseguir, visualmente, acompanhar o teu filho?
No princípio, foi muito, muito complicado. Não saia de casa, não queria ir para lado nenhum. Depois
a minha irmã mais velha começou a apertar comigo, fui para uma Escola em Lisboa para reaprender
a fazer as coisas. Depois voltei, comecei a tratar do meu filho, mudava-lhe as fraldas, dava-lhe
banho, comida, fazia tudo o normal por ele. E aquela sensação que eu tinha foi passando, aceitei e
comecei a viver outra vez, com as adaptações necessárias.
No meio disto tudo, houve pessoas que te desiludiram?
Algumas. Não falavam comigo, parece que tinha uma doença. Aceitei melhor o que me aconteceu do
que algumas pessoas à minha volta.
Fazendo um balanço dos últimos anos, o que tem sido mais difícil?
Tive muita dificuldade a procurar trabalho, e depois quando apareceu tive de escolher. Fiz uma
entrevista na Câmara de Silves, em 2001, fiquei em primeiro lugar para telefonista. Depois apareceu
outra em Almancil, e depois foi aquela no Jumbo. Tive de optar por uma das 3. Estou há quase 19
anos no Jumbo que agora é Auchan.
Como é um dia normal de trabalho para ti?
Como já disse, tive de agarrar a oportunidade de trabalho que surgiu, só que é muito complicado
para mim. Tenho de me levantar às 6 da manhã para me despachar e apanhar o autocarro.
Mas agora já é mais fácil, quando aconteceu o acidente, tinha de tratar de mim e do meu filho.
Separei-me da minha ex-mulher, fiquei com o meu filho. Foi muito complicado. Ficar sozinho com o
teu filho de 7 anos e ser cego.. é difícil, mas tenho conseguido e ainda hoje, passados tantos anos,
ele vive comigo.
Como é que foi na altura ficares a cuidar sozinho de uma criança?
Foi muito complicado. Nesse aspecto, tive pouca ajuda. Tinha de me levantar muito cedo, ir para o
trabalho. Quando havia complicações tinha de apanhar um táxi para vir até São Brás.
Estava 12 horas fora de casa, como estou agora, devido aos transportes. Tentei procurar trabalho em
São Brás, mas não me apareceu nada. Quase todos os deficientes do país têm trabalho à porta de
casa, eu não. Só que na altura não havia nada para mim e eu tive de me jogar.
Como é que fazes as coisas em casa, no dia a dia? Como é que consegues explicar a tua
independência?
Como já tinha ido para a Escola de Reabilitação, aprendi a fazer muita coisa que pensava que não
conseguia fazer quando fiquei cego. Conseguimos fazer as coisas, temos é que nos adaptar. Por
exemplo, a lavar e a varrer o chão tenho de me concentrar.
Estou tão habituado a fazer as coisas que já me parece tudo normal, mas sou sincero, o mais difícil é
se a minha roupa tiver uma nódoa. E depois as pessoas parece que têm vergonha de dizer. Podem
dizer-me, que eu vou trocar de roupa. Não magoam se o fizerem, eu sou cego, não vejo e prefiro que
me digam a verdade.
Quando soubeste que não ias recuperar a sua visão, qual foi a primeira sensação que tiveste?
Foi desistir. Não queria sair da cama, nem falar com ninguém quando soube isso. Tentei o suicídio,
mas não fez efeito, ou então o gajo lá em cima não me queria lá.
Estava farto e cansado de estar cego, tinha vontade de conduzir, de ver a cara das pessoas… fui
abaixo, mas já passou.
Quantos cães guias já tiveste?
A Violeta é a segunda. O primeiro foi o Max, que morreu há 4 anos. O Max marcou-me muito, era
muito especial. A Violeta também, mas são diferentes.
O que é que eles significam para ti?
São uma ajuda. Tiram um bom bocado do meu tempo, não vou mentir. Tenho de aspirar a casa dia
sim, dia não. Mas eles são os meus olhos. Na rua vou à vontade. Enquanto que, com a bengala
tenho de procurar os sítios e controlando os pontos de referência, com a Violeta basta dizer onde
quero ir, que ela já sabe. A Violeta foi dada pela Câmara, e o Max foi dado pelo Estado.
Sempre foste um homem muito conhecido pela força de viver, pela alegria… Continuas a
viajar?
Continuo! Quando posso, lá estou eu em qualquer lado. Adoro viajar!
O que é que representa para ti viajar? Que outros sentidos procuras aproveitar?
Todo o ser humano tem uma coisa, que é a imaginação, ela é nossa e não é de mais ninguém. Então
imagino!
Vou para a neve e imagino como é a neve quando conseguia ver. Como já vi, consigo imaginar mais
ou menos as coisas.
Depois curto como os outros, bebo, como, rio, salto!
Do que tens mais saudades de ver?
Ver os meus amigos. Ver os filhos dos meus amigos. Porque os meus amigos veem a cara do meu
filho, mas eu não vejo a cara dos filhos deles. Tenho saudades de ver o mundo. Tento imaginar como
estão os meus amigos, sei que uns estão mais gordos, outros mais magros!
Tens medo de te esqueceres como eras?
Não, tenho é medo se voltar a ver, não ser a pessoa que eu era. Isso é o meu maior medo.
E porquê?
Sei como é que eu era, mas não sei como é que estou. Sei que estou mais velho. Eu tinha 24 anos,
agora tenho 47… são 23 anos depois. Muita coisa mudou.
Hoje em dia, quem é o Carlos?
Sou a mesma pessoa que era há 24 anos. Quando fiquei cego, muita gente disse que eu não
aguentava e que me ia matar, porque estava sempre a contar anedotas, a rir, a dançar. Se me
perguntarem, conheço todas as discotecas do Algarve. Cada fim de semana ia a uma! Corria tudo!
Mas eu continuo com a mesma alegria e com a mesma loucura!
Sentes-te um homem realizado, apesar de tudo?
Sinto-me realizado em alguns aspetos. Sou feliz. Gostava de ver a cara da minha neta. Há outras
coisas que gostava de ver. São Brás está diferente. Eu imagino São Brás, mas não sei se está como
imagino. Parece que não, mas a mudança de São Brás, conheci-a toda. Vou pintando um cenário à
minha maneira para continuar a viver.
Já alguma vez sentiste preconceito por seres cego?
No princípio, sim. Mas agora estou à vontade. As pessoas respeitam-me. Pode haver um ou outro,
mas isso é como tudo. Tenho muitos amigos em São Brás, e foram eles que me ajudaram a erguer.
És um Homem de Fé?
Sou, nunca perdi a fé.
Achas que a tua fé aumentou depois daquilo que aconteceu?
Muito, muito! Porque os meus amigos nunca me largaram, e isso para mim é uma fé também.