“(…) a intenção da construção de uma cilada ao Diretor do Museu pretendendo retirar-lhe a principal fundamentação para o seu procedimento.”

Emanuel Andrade Correia Sancho, nasceu em Faro em 1961, filho e neto de são-brasenses, é um museólogo com uma carreira notável dedicada à valorização da cultura local e à promoção da museologia social. Desde 1990 que desempenhava funções como diretor do Museu do Traje de São Brás de Alportel, tendo sido uma figura central na transformação deste espaço num centro de referência nacional e internacional em práticas museológicas participativas e inclusivas.
Ao longo da sua trajetória, Emanuel Sancho tem sido reconhecido por implementar um modelo de gestão horizontal e comunitário, que privilegia a autonomia das equipas e a integração ativa da comunidade local e das populações estrangeiras residentes. Este enfoque levou o museu a ser distinguido como um exemplo de museologia social, com impacto significativo na preservação da memória coletiva e na coesão cultural do Algarve.
Em 2021, foi eleito “Museólogo do Ano” pela Associação Portuguesa de Museologia (APOM), distinção que motivou um voto de louvor unânime por parte do Município de São Brás de Alportel, em reconhecimento do seu contributo exemplar para a salvaguarda do património e identidade locais.
Além da sua atividade no museu, Emanuel Sancho é também autor de diversos artigos académicos sobre museologia social e gestão participativa, publicados em revistas especializadas como os Cadernos de Sociomuseologia e a Revista de Administração Contemporânea.
Em setembro de 2024, Sancho foi suspenso das suas funções pela Santa Casa da Misericórdia de São Brás de Alportel, entidade proprietária do museu. Esta decisão gerou controvérsia, entre a comunidade, várias associações culturais e ainda com a Associação Portuguesa de Museologia a considerar a suspensão injusta, destacando o seu percurso exemplar e o impacto positivo do seu trabalho na museologia portuguesa.
Emanuel Sancho, fala em exclusivo ao Sambrasense, sobre o processo pelo qual está acusado de difamação, a sua opinião sobre a postura de gestão da Santa Casa da Misericórdia, o apoio da comunidade local e as organizações museológicas nacionais e ainda a relação com a Câmara Municipal de S. Brás de Alportel.
O Jornal O Sambrasense informa que também a Santa Casa da Misericórdia tem vindo a ser contactada pela nossa redação para realização de entrevista, no entanto, ainda não obtivemos resposta para a realização da mesma.
ENTREVISTA
O processo disciplinar e as alegações de difamação têm gerado debate na comunidade. Como avalia a gestão desta situação pela Santa Casa da Misericórdia?
Na base do processo disciplinar está a Nota Informativa nº 90. Convém referir que as Notas Informativas são uma iniciativa do Museu num esforço de manter uma comunicação assídua para com esta Mesa Administrativa da Misericórdia.
Ao longo das 90 Notas Informativas podemos encontrar os vários apelos e iniciativas do Museu com vista à manutenção de uma relação cordial e colaborativa que permitisse resolver, pouco a pouco, as dificuldades que íamos enfrentando. Não há memória da Misericórdia ter alguma vez tomado alguma iniciativa de reunir ou falar construtivamente sobre a valência Casa da Cultura António Bentes/Museu.
No que concerne à Nota Informativa nº 90, aparentemente a Santa Casa viu injúria, difamação e desrespeito, num documento que é verdadeiro e honesto. Ali não existem acusações pessoais, apenas constatações de um movimento financeiro reincidente que considerámos irregular, em que era feito uso indevido de fundos do Museu, ao arrepio do que está protocolado e seguido desde sempre.
O documento terá causado impacto, mas foi sempre realista e respeitoso da verdade. Apenas alertou para as ilegitimidades cometidas e os seus contornos jurídicos. Teve uma distribuição muito limitada. Foi enviado para a Mesa Administrativa e irmandade, Amigos do Museu, Autarquia e algumas pessoas próximas. Não se fez uma distribuição massiva nem foi enviado para os meios de comunicação social. Essencialmente, foi feito uso da lista de contactos divulgada pela própria Misericórdia.
Que esclarecimentos gostaria de prestar sobre as suas ações e o contexto que levou à atual polémica?
O momento zero que marca a génese do Museu, enquanto valência cultural da Misericórdia, deu-se no dia 26 de fevereiro de 1987. Nesse dia o Padre José da Cunha Duarte, o senhor Provedor Abílio José Mendonça Barros e o Bispo do Algarve D. Ernesto Gonçalves Costa validaram um Protocolo que marcou o nascimento da Casa da Cultura António Bentes/ Museu. Alguns anos depois, em 1992, foi adicionada uma adenda ao documento. Desta vez, o renovado Protocolo foi validado pelo novo Bispo do Algarve D. Manuel Madureira Dias.
Neste documento estão expressos os deveres e obrigações das partes que assinaram o Protocolo com destaque para a gestão dos fundos entregues quer à Misericórdia, quer ao Museu, com finalidades ligadas à Cultura.
O processo disciplinar e o meu despedimento enquanto Diretor assentam no argumento defendido pela Misericórdia de que o Protocolo não tem validade jurídica, apesar de sabermos que desde 1984 até aos nossos dias – 41 anos – foi sempre honrado pela Instituição. Ao longo dos últimos anos o Provedor Júlio Gago Pereira e a Mesa Administrativa foram alertados para as várias irregularidades em que estavam incorrendo, pelo desrespeito do Protocolo. Nunca expressaram dúvidas acerca da legalidade do mesmo. Foi no dia 19 de setembro de 2024, dia da minha suspensão, que me foi dito pela primeira vez que o documento não tinha validade jurídica. Desta situação deduz-se facilmente a intenção da construção de uma cilada ao Diretor do Museu pretendendo retirar-lhe a principal fundamentação para o seu procedimento. Esta é uma estratégia que é indigna dos responsáveis da nossa Misericórdia.
A Nota Informativa nº 90, emitida por mim, usada como argumento principal da acusação, expressa os direitos da Casa da Cultura António Bentes/Museu atribuídos pelo Protocolo. O Diretor tem a obrigação de defender a legalidade.
Apesar de este ter sido o motivo, quase banal, que levou à suspensão e consequente despedimento, o comportamento do Senhor Provedor foi sempre ríspido e por vezes até desrespeitoso. O Museu era visto como uma despesa sem retorno. Apesar disso, o Museu insistiu repetidamente nos apelos e propostas de diálogo que embateram na porta sempre fechada da Santa Casa.
Qual foi a sua reação ao apoio demonstrado pela comunidade local e pelas organizações museológicas?
Para quem, durante muitos anos, trabalhou todos os dias – para e com as pessoas desta Vila – sentir agora a sua solidariedade não foi propriamente uma novidade, mas foi bom sentir esse apoio e reconhecimento por todo o trabalho que o Museu tem feito pelas pessoas, não só as locais mas também todas aquelas que ali encontraram espaço e condições para desenvolverem as suas investigações e os seus projetos.
Descobri Medo em muitas pessoas. Na recente petição pública “É Urgente Salvar o Museu…” fomos confrontados com testemunhos de pequenos comerciantes, muitos funcionários da Câmara Municipal e da Misericórdia e de pessoas anónimas com quem nos encontrámos nas ruas de São Brás que confidenciaram os seus receios de represálias. Mensagens comoventes foram-me dirigidas discretamente ou murmuradas a medo. 50 anos depois do 25 de abril de 1974 ainda há quem prefira a boca pequena ou mesmo calar, e não arriscar eventual censura ou retaliação por parte de quem está no poder, faz tanto tempo.
Proveniente do Algarve e do nosso país em geral as organizações museológicas que se manifestaram fizeram-no espontaneamente. Revela a dimensão do problema e o prestígio que este pequeno Museu, situado numa pequena vila do interior do Algarve, conseguiu granjear no panorama museológico nacional e internacional. Entretanto o Município e a Misericórdia consideram a uma só voz, que este é um mero conflito laboral. Fico triste com este “apoucar” da situação.
Qual foi a sua reação ao receber a notícia de que está perante um despedimento por justa causa?
O despedimento é a decisão interna da Instituição Misericórdia contra um trabalhador que é simultaneamente membro da Irmandade tendo chegado ao limite de estar proibido de aceder aos diversos espaços com base numa argumentação jurídica construída pelos seus próprios advogados. Nesta fase nada havia a esperar de diferente. Será que em Tribunal de Trabalho se manterá esta decisão? Será que um juiz vai dar razão ao Senhor Provedor Júlio Gago Pereira que arrastou uma Instituição digna para esta situação? Estamos em crer que isso não acontecerá. A minha reação foi de serenidade pois sei que este é um processo longo.
O que move o Senhor Dr. Júlio Gago Pereira, infeliz provedor da nossa Misericórdia é o seu poder e autoridade, o dinheiro, as suas ambições pessoais e a eliminação das vozes discordantes. Será que a Irmandade da Misericórdia não tem nada a dizer?
Prometeu-me o advogado da Misericórdia que “sairia disto bem calçado”. Perante tão grosseira expressão, não tem limite a indignação ao observarmos alguém que representa a nossa Misericórdia, a pensar que tudo se dissolve com dinheiro.
O que me move a mim não é o emprego nem o salário de 1200 Euros líquidos que deixarei obviamente de receber. Move-me o Museu, as pessoas, o legado que a esta Terra deixou o padre José da Cunha Duarte, a injustiça e a minha dignidade pessoal.
Sobre o futuro: Como vê o futuro do Museu do Traje, considerando os desafios atuais? Que medidas considera essenciais para garantir a transparência e a sustentabilidade do museu?
A Misericórdia já desmontou o sistema organizativo do Museu inspirado nos princípios da Sociomuseologia. Os procedimentos de gestão museológica, onde se divulgavam semanalmente as funções, responsabilidades individuais, atividades e projetos em curso (Mural), a cargo de cada trabalhador, desde sempre dirigidos à Misericórdia, à Autarquia e à comunidade em geral, foram extintos. As “Notas Informativas” terminaram deixando de existir evidências escritas do que se passa no Museu. A palavra do Senhor Provedor e da Mesa é a verdade oficial.
O Grupo FMId depois de mais de 20 anos de trabalho ininterrupto desapareceu. Perdeu-se, não uma “atividade” como diz a Mesa Administrativa, mas sim cerca de 30 investigadores/inventariadores da memória local – uma escola de cidadania. Foi um projeto inovador, muito visitado para ser replicado, onde todos podem vir buscar as suas origens e as suas memórias.
Os grupos de voluntários não vivem os seus melhores dias tendo alguns já abandonaram as suas funções. A presidente dos Amigos do Museu afastou-se. Outros se preparam para o fazer.
Agora são os políticos locais, o Senhor Provedor e outros membros da Mesa Administrativa que falam do Museu e de Museologia Social com proclamações públicas descabidas, revelando obviamente o seu desconhecimento do que é um Museu Social.
Até 2016, numa altura em que a gestão era flexível e gozava de autonomia, o Museu era perfeitamente “transparente e sustentável” nas palavras dos responsáveis de então.
Hoje, os custos de funcionamento são bem mais elevados do que então, fruto de um diálogo que deixou de existir. A um Museu em decadência, a Misericórdia e a Câmara Municipal atiram-lhe agora dinheiro para cima aumentando-lhe as dotações e queixando-se disso ao mesmo tempo. Neste ambiente adverso de contração, foi a variante económica que se sobrepôs aos restantes fatores da sustentabilidade.
Como descreveria a relação entre o Museu, a Santa Casa da Misericórdia e a Câmara Municipal?
Neste momento, pela primeira vez na sua história, a Santa Casa da Misericórdia de São Brás de Alportel encontra-se profundamente dominada por interesses político-partidários. Depois de quase 4 décadas de total domínio pelo mesmo partido político, neste concelho, a autarquia estendeu os seus braços e influência a praticamente todas as estruturas da sociedade civil substituindo-se às mesmas, criando dependências, submissão e enfraquecimento social. Para as pessoas da nossa Terra há que pensar bem antes de falar pois a intimidação é uma arma temível. A política do medo domina São Brás de Alportel.
No início de 2023, o Museu solicitou à Câmara Municipal que fosse mediadora no restabelecimento do diálogo entre este e a sua tutela, a Santa Casa da Misericórdia. Em reunião agendada pela Câmara Municipal, em que estiveram presentes muitas pessoas, Câmara e Misericórdia passaram a partir dessa data a atuar em bloco. A gestão da Câmara, particularmente da mediadora, atual Presidente da Câmara Marlene Guerreiro, caracterizou-se por uma lamentável ineficiência e parcialidade. Esta, tomou iniciativas que deixava a meio dando azo a que a Misericórdia protelasse indefinidamente o caso com o pretexto de que aguardava a diligência da Câmara. Até hoje.
O equívoco encontra-se no facto de que o Concelho só tem a ganhar com uma boa Câmara, uma boa Misericórdia e um bom Museu. Um Museu que goze de autonomia, preservando a sua condição de valência cultural da Santa Casa da Misericórdia, como sempre aconteceu, deixa todos a ganhar. Lamentavelmente o Provedor Júlio Gago Pereira valoriza mais o seu efémero poder. Lamentavelmente a Câmara Municipal optou por se lhe juntar pois os interesses, cores políticas e as ambições pessoais, falaram mais alto. São Brás de Alportel ficou a perder.
Acha que as entidades locais têm dado o suporte necessário ao museu em termos de financiamento e visibilidade?
Grupos de investigadores conceituados arrastaram para o Museu franjas discretas e marginais da sociedade são-brasense. Refiro-me a pessoas interessadas na história da moda e do vestuário tradicional, etc, que enquadradas por técnicos voluntários, aqui encontraram socialização e momentos de felicidade que simultaneamente passaram a desempenhar funções essenciais ao funcionamento do Museu.
Em termos de suporte, há dois modos de atitude. A Câmara Municipal, tem mantido os “serviços mínimos” com o compromisso de subsidiar os custos do Museu, particularmente as suas atividades culturais, através da verba que entrega mensalmente à Santa Casa da Misericórdia.
Da parte da Misericórdia, como proprietária dos edifícios e entidade tutelar da Casa da Cultura/Museu, deve garantir a conservação, os trabalhadores necessários e as despesas correntes, segundo os compromissos assumidos.
Da parte do Museu, do Diretor e da sua pequena equipa coube sempre o dever de uma “entrega militante” sem limites, de tempo, de esforço e de disponibilidade para efetuar Tudo o que fosse necessário para bem de todos – do Museu, da Misericórdia, do Concelho, dos visitantes e dos utilizadores.
A visibilidade e prestígio conquistados recusou sempre a propaganda. foi sempre o fruto do trabalho de todos, com o tempo que nos foi dado e a persistência de cada um. Passo a passo. Sempre reservámos para nós a medida da visibilidade que pretendíamos.
Sempre respeitámos, mas nem sempre fomos respeitados. Nunca andámos a pedinchar. Da Comunidade Europeia e do Estado Português fizemos o possível por merecer os belíssimos projetos que financiaram. A Câmara Municipal participou nos custos do Museu na medida do que entendia merecermos. A Misericórdia – nossa Casa-mãe – sempre nos fez perceber das suas limitações. Os voluntários – Amigos do Museu e Técnicos voluntários – deram-nos tudo sem pedirem nada em troca. É uma evidência hoje, a pretendida visibilidade, sustentada através das redes sociais, elencando as realizações que não dispensam os bailes, os fados e as guitarradas. Por aí se avalia o empenho das entidades responsáveis pela atual gestão do Museu. A Câmara Municipal, o Sr. Provedor e a sua Mesa Administrativa, esforçam-se em mostrar que, agora, sim, a atividade do Museu está no bom caminho. Que pena nunca, antes, terem sido tão assíduos!…


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Barlavento
Público
Isa Vicente